Haviam passado uns dias, a minha percepção de tempo já não era a mesma. A letargia do meu ser abstraía-me do decorrer do mesmo. A memória da Rosa já estava algo sumida, apenas tinha uns resquícios do tom da sua voz, do seu cheiro, da sua presença. Tudo eram memórias de um tempo que fazia por não recordar, embora à noite me fosse impossível alhear delas. Ocasionalmente chegavam-me notícias dela e eu fingia desinteresse, queria ser mais forte que o sentimento que me afogava.
Numa tarde, sozinho em casa, ouvi o telefone tocar. Levantei-me para atendê-lo e não deixei de ficar surpreso quando ouvi do outro lado a Mariana. Era uma grande amiga minha que já não a via há uns bons meses. Tinha ido trabalhar para outra cidade, onde tinha conhecido um rapaz com quem teve uma relação recém terminada. Precisava de espairecer e, como estava com saudades minhas, decidiu desafiar-me para passar uma tarde na sua companhia. Era realmente o que eu estava a precisar. Nestes dias, eu era a pior companhia que eu mesmo podia ter. Estava em baixo e sempre que me encontrava sozinho, inevitavelmente o meu pensamento ia de encontro à Rosa.
A porta tocou e era a Mariana, estava diferente, a vivência noutra cidade parecia ter-lhe sugado os restos de ingenuidade que a caracterizavam. Estava com um semblante mais pesado que o normal, mas isso também eram normal dada a situação. Nessa tarde partilhámos a mágoa recente. Ambos falámos sobre as nossas experiências e sobre as nossas conclusões. Por momentos fomos filósofos. Chegámos à conclusão que falar sobre os recentes acontecimentos não servia para mais do que nos deixar pior.
As recordações do tempo de adolescente, acabaram por ser o mote dessa tarde. A mariana partilhava comigo o gosto pelas vistas da cidade e por isso fomos para um jardim continuar a nossa conversa. Relembrámos histórias de outros tempos que não nos eram indiferentes. Entre lágrimas e sorrisos o tempo corria a bom passo. Já nem me lembrava quão boa companhia era a Mariana. Era hora de jantar e ainda estávamos na rua entretidos um com o outro quando a Mariana se lembrou que tinha de ir rapidamente a casa, pois iria para o bairro alto mais tarde. Perguntou-me se eu queria ir. Ao início estava reticente, mas rapidamente convenceu-me de que seria o melhor. Beber um copo e conhecer pessoas novas seria uma boa solução para me afastar do constante pesar em que me submergia sempre que estava só.
Á hora combinada estava à porta de sua casa para seguirmos para o nosso destino nocturno. Sentia que a presença da Mariana me estava a fazer bem uma vez que já não estava sozinho, ela percebia o processo pelo qual estava a passar. No bairro alto apresentou-me a uma série de amigos, dando grande ênfase às suas amigas, como que uma mensagem quisesse passar. Fomos bebendo copo, atrás de copo, e o que tinha começado por uma ligeira euforia havia passado a um estado alcoolizado tal que já nos riamos a torto e a direito de tudo o que ouvíamos.
Já era tarde e o bairro alto ficara vazio, à excepção de outros amigos de Baco que, comos nós, deambulavam nas suas ruas. Estava na hora de ir para casa, de dar por encerrado mais um dia, embora nenhum de nós tivesse essa vontade. Para nossa fortuna, nessa noite não havíamos pensado nos outros, só em nós e no álcool. Decidimos então ir para casa a pé e ficarmos a falar algures na zona do nosso bairro. Estava eu a agradecer-lhe pelo facto de me ter procurado e de me ter desafiado para uma noite daquelas quando, sem aviso, a Mariana me beijou. Não consegui deixar de estranhar, afinal de contas era uma grande amiga, que já conhecia há muitos anos e, com quem não havia tido nada para além da amizade. Quando terminou, limpou as lágrimas da sua face e disse-me que era um bom rapaz e que tudo se resolveria. Pediu-me desculpas pela sua atitude, mas dava para perceber que grande parte dela se devia ao que tinha bebido. Deixei-a em casa e despedimo-nos com um forte e sentido abraço, como se naquele momento pretendêssemos exorcizar a alma do outro.
No caminho por casa, veio-me de novo à cabeça a memória da Rosa. Estava de novo sozinho, mas a noite com a Mariana tinha-me aberto os olhos para outro prisma. No dia seguinte, era o dia de partida da Rosa para Inglaterra. Acordei com uma dor de cabeça que nunca havia sentido, levantei-me com um pensamento na cabeça: água! Era a factura da noite anterior. Quando olhei para o relógio reparei que tinha adormecido para além do suposto. Era a primeira noite, em muitos dias, que conseguira dormir condignamente. Contudo estava atrasado, queria trocar umas palavras com a Rosa antes dela partir, mas estava a ficar mesmo em cima da hora. Saí de casa ainda completamente desarranjado tentando chegar a horas ao aeroporto, mas já não havia nada a fazer. Assim que cheguei o avião já se fazia à pista. O João viu-me e veio ter comigo. Perguntou-me o que fazia lá, ao que lhe respondi que não sabia bem. Fui para casa pensar, a única coisa que fazia nesses dias.
Apesar de muitas vezes não querermos admitir, o sofrer de amor faz-nos crescer, por isso digo que só numa semana cresci como o não havia feito em anos.
Ass: Quim
. dia-a-dia de outras familias
. mulher à beira de um ataque de nervos
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